“Só vale se for sofrido!”
Essa é uma frase que eu não ouvi, mas entendi por trás das ações de pessoas que desejam ter suas histórias e sucessos valorizados.
Já tem algum tempo que, junto com minha esposa (a Amanda), tanto identificamos esse padrão em nossas ações quanto nas de outras pessoas.
O dilema do Sucesso Sofrido é o seguinte:
Alguma conquista na vida só terá valor se o processo a se conquistar for complicado, sofrido, difícil ou demorado. Logo, devo escolher entre não ter uma história de superação ou aceitar o sofrimento e dificuldades.
Talvez você nunca tenha ouvido alguém falar para você que você tem que sofrer para ser bem sucedido. Contudo, provavelmente você já se viu em uma situação que ou você ou alguém conhecido resolveu um problema ou conquistou algo de forma simples e isso serviu de justificativa para dizer “isso não é nada!”, “foi fácil”, “não conta”.
Quem sabe até mesmo percebeu que problemas que poderiam ser resolvidos de forma simples ou direta acabaram sendo complicados de forma irracional. Quase como se fossem para poder depois contar uma história de superação em vez de uma simples conquista.
Naturalmente, existem vários aspectos que estão envolvidos nesse processo. A maior parte é sutil e complicada de explicar, então vou fazer o meu melhor.
…na verdade não sei se é complicado de explicar, mas imaginei que você ia dar mais atenção e valor se não fosse algo mundano. E isso já explica como estamos enraizados com esse dilema.
Nem todo problema é simples
Vamos começar com o mais claro ponto que passa na cabeça quando alguém fala que as coisas poderiam ser mais simples.
Tem problemas que são complexos, difíceis, demorados, trabalhosos e quase impossíveis. Se tudo fosse fácil provavelmente não estaríamos tão atrasados como espécie no reconhecimento de nossos pares como iguais. Não haveria pobreza. Já estaríamos colonizando outros planetas.
Problemas difíceis podem ser tecnológicos, sociais, traumas, financeiros, políticos, religiosos, etc. O que não falta é problema cabeludo nesse mundo.
Qualquer pessoa que resolve problemas assim merece de fato o reconhecimento da superação, conquista e honra.
Não é desse tipo de problema que estou falando. Nesse artigo foco naquele outro tipo de problema que todos nós temos e fazem parte da nossa vida cotidiana.
São as dificuldades e desafios que não ameaçam nossa existência ou sobrevivência. Aquilo que normalmente pode ser resolvido sem a necessidade de uma jornada do herói.
O pescador e o empresário
Tem uma história muito bacana do pescador e o empresário.
Em uma vila na costa do país, um empresário foi passar suas férias. Encantado com aquele paraíso, ele precisava compartilhar sua sensação de liberdade. Olhou para a praia e viu um pescador que estava acabando de chegar com seus peixes.
“Opa, tudo bem?” – aproximou o empresário.
“Oo, bom demais e com você?” – respondeu o pescador.
“Estou aqui encantado com esse lugar, você mora aqui?”
“Sim, moro logo alí naquela casinha ao lado da praia!”
“Que bacana, mas que peixes grandes e bonitos! Quanto tempo você demorou para pescá-los?”, indagou o empresário.
“Não muito tempo”, respondeu.
“Por que não ficou mais tempo no mar para pegar mais peixes?”
“Por que eu faria isso?”, riu o pescador. “Eu já ganho o suficiente para sustentar a mim e a minha família”.
“E o que você faz no resto do dia?”, o empresário perguntou com uma cara de espanto.
“Estou livre para fazer o que eu quiser. Posso tirar um cochilo, brincar com meus filhos, ir até a cidade para conversar com meus amigos. É uma vida boa”
Um pouco zombando, o empresário discursou: “Ah, você só acha que é uma vida boa! Eu tenho uma empresa e posso te ajudar. Se você está pescando isso tudo com esse pouco tempo na água, penso que se você ficar mais horas no mar em poucos anos poderá já comprar um barco maior. Depois de mais um um tempo você poderia contratar alguns outros pescadores aqui da região, treiná-los e criar uma frota. Afinal, seu know-how de como pescar aqui claramente te dá uma vantagem competitiva.”
Agora já com um caderninho na mão, o empresário continuou desenhando diagramas: “Com alguns anos você claramente já poderia parar de vender para intermediários e passar a vender para as fábricas. Quem sabe até ter uma própria fábrica para industrializar os peixes. Assim você controlaria também a distribuição e processamento além de só o produto. Naturalmente, você teria que mudar para uma cidade maior, com acesso aos grandes mercados e oportunidades. Aqui posso te ajudar muito, tenho muitas boas conexões. O céu é o limite, daria para expandir a empresa, diversificar, quem sabe até entrar na bolsa.”
Observando a euforia do empresário, o pescador perguntou. “Mas senhor, quanto tempo isso levaria?”
“Ah, não acho que mais do que 15, 20 anos. Você está bem novo, isso passa num piscar de olhos!”
“E o que acontece depois?” – Perguntou o pescador ainda confuso.
“Chegando até o momento de abertura da empresa pra bolsa você já terá um patrimônio enorme. Será rico! Imagina ganhando milhões de reais todos os anos.”
“Milhões? Mas e aí, o que aconteceria?”
“Bom, você pode se aposentar, até antes um pouco que outras pessoas, como um homem rico. Poderá escolher a vida que quiser para você e para sua família. Inclusive comprar uma casa de praia e fazer o que quiser. Brincar com seus filhos, tirar soneca, ir para o bar tocar violão. Você teria uma vida boa.”
Depois de pensar alguns momentos, o pescador disse ao empresário: “Muito obrigado pelos seus conselhos. Não me leve a mal, mas eu vou recusar a oferta pois eu já vivo essa vida boa hoje.”
Análise
Essa história é sensacional e serve como lição em vários aspectos. De ter integridade e clareza para entender que não é a arrogância e sentimento de superioridade que vai determinar a qualidade de um conselho; a mostrar que não há necessidade de complicar algo que é simples.
O entendimento do que é sucesso para cada um de nós é algo super importante. Sucesso para o empresário da história era algo muito mais sofrido. Ele não conseguiu identificar o sucesso da vida do pescador mesmo sendo algo que ele mesmo almejava pois, para o pescador, aquilo era algo fácil, tranquilo e simples.
Parece que, “para valer”, aquela rotina de tranquilidade na praia só poderia ser atingida depois de muito esforço, tempo e junto com uma conta alta no banco.
É desse tipo de problema que estou falando aqui. É o tipo de coisa que, quem passou, vai falar:
“Ah, mas você não sabe o que eu passei!”
Mas no fundo poderia ser mais simples.
Autocomplacência, confiança e o heroísmo
Há alguns anos trabalho com marketing digital e vendas. Seguindo os moldes de lançamentos de produtos online me deparei com o termo “A Jornada do Herói”.
Com o objetivo de gerar um sentimento de ‘sou especial’, a ideia é:
A melhor forma de se apresentar para algum potencial cliente é falar da sua jornada do herói relutante. Ela vai assim:
- Eu sou como você
- Eu queria ser diferente
- Porém, eu tinha essa dificuldade
- Fiz enormes investimentos de tempo, dinheiro e foi muito difícil
- Agora sou uma pessoa diferente e vou compartilhar essa informação por que quero te ajudar.
Ou quem sabe assim:
- Eu sempre tive esse determinado problema
- Mas a vida não deveria ser assim
- Relutei por muito tempo para resolver isso por algum motivo qualquer
- Aí algo aconteceu na minha vida e eu resolvi enfrentar esse problema
- Hoje posso te ensinar sobre isso e te contar o caminho
…a jornada de alguém que enfrentou diversos problemas para chegar até onde está é uma história que apela para esse sentimento que temos ao valorizar a conquista se ela vem através de dificuldades.
Porém, quando eu fui escrever a minha história do ‘herói relutante’ eu me senti como se tivesse alguma coisa errada. Sim, eu passei por dificuldades e momentos difíceis na vida. Mas olhando para trás eu posso ver o tanto que fui privilegiado pela linda família que tive, por poder ter tempo e dinheiro para investir nos meus sonhos e por conhecer pessoas no meu caminho que me impulsionaram em vez de me tolher.
Em momento algum eu superei a fome/pobreza, resolvi um problema que vai fazer a vida de milhares de pessoas melhor ou desafiei as leis da física e biologia. Eu não sou um herói.
Podemos ver, no entanto, que buscamos valorizar nossas ações o tempo inteiro contando histórias heroicas. Seja para não ‘atrair olho gordo’ ou simplesmente para enaltecer nosso desejo por atenção, acabamos nos colocando como seres que desbravaram o mundo para conseguir atingir um objetivo. Vencemos batalhas. Superamos nossas expectativas. O sucesso não pode ser algo fácil, senão não conta.
Em 2010 eu comecei a criação da minha monografia de graduação na faculdade. Ao meu redor, todos dizendo “Nossa! Não durmo mais, é muito difícil isso!”, “Não tenho mais vida, é só monografia!”, “Não sei se vou conseguir, não sei se dou conta.”.
Eu comecei achando que era algo bem tranquilo e agradável de fazer essa tal de monografia. Poucos momentos depois estava eu também reclamando da vida, completamente contagiado pelo sentimento de que eu não podia dizer que estava fácil ou agradável senão estaria sendo uma pessoa arrogante.
A norma era ser autocomplacente. A confiança, sucesso sem esforço e diversão é para quem não é sério. Quem não dá valor.
Sucesso sem sofrimento
Como identificar o que pode ser simplificado e o que realmente é cabuloso?
Eu não faço ideia do que é a resposta universal, mas tenho bastante confiança de que a autoconfiança é um dos fatores mais importantes.
O entendimento daquilo que consideramos como “Sucesso” para cada um de nós é o primeiro passo. Em seguida, acredito que envolva uma mistura de humildade com confiança.
Ser humilde para aceitar quem somos sem transparecer arrogância e confiança para quebrar padrões.
Eu penso que quando enfrentamos algo complicado acabamos passando a maior parte do tempo reclamando e encontrando justificativas para transformar a experiência ainda mais complicada.
Como seria se a primeira reação ao deparar com um desafio fosse a confiança? Fosse um sentimento de empoderamento. Uma noção de que está tudo bem ser simples e fácil; a conquista não é menor só porque tenho a capacidade de a atingir sem precisar de muito esforço.
Trouxe essa reflexão pois é algo que estou me policiando e questionando. Vivo uma vida como nômade digital e estou sempre em dúvida do que compartilhar com o mundo.
Falo dos desafios e complicações para mostrar que a vida de nômade também não é fácil?
Continuo contribuindo para o ideal imaginário do ‘laptop na praia’ e que a vida é uma maravilha como o Instagram nos mostra?
Ou será que vou pelo caminho do meio. O caminho da incerteza. O caminho da vulnerabilidade.
Acho que estou preferindo esse último. Me parece mais real.
Divirta-se!
2 Comentários
Excelente texto, André! Também já me deparei com reflexões semelhantes quando construi algumas jornadas do herói.
Agora, não acho que o “caminho do meio” seja o da incerteza e vulnerabilidade. Prefiro chamá-lo simplesmente de caminho realista. E as pessoas estão cada vez mais valorizando quem toma esse caminho, sem máscaras e mostrando que nem tudo é perfeito
Oi Wildson! Que bacana seu comentário 🙂 Também acredito que seja um caminho mais realista e que as pessoas valorizam mais a verdade e a honestidade. Ao mesmo tempo acredito que nos colocamos mais vulneráveis nesse momento. Sem esconder atrás de estratégias, pretextos ou ideias. Somos quem somos. Vulnerável não num sentido ruim, mas sim de uma maneira verdadeira e apta à exposição do que somos de fato.
Um abraço!