Trabalhadores humanóides e carrinhos de vigilância: a “IA incorporada” transforma o cotidiano na China
Em uma tarde enevoada de sábado no Parque Central de Shenzhen, um grupo de adolescentes se protege da garoa sob um toldo de concreto. Com sacos de batatas fritas à vista, elas se reúnem em torno de alguns smartphones para cantar baladas do Mandopop. O riso delas invade o gramado – até que um zumbido mecânico interrompe o momento: alguém acaba de pedir o jantar.
A poucos metros daquela sessão de karaokê improvisada, encontra-se um “armário de entrega” – um dos mais de 40 em Shenzhen operados pela Meituan, a maior plataforma de delivery de alimentos da China. Os frequentadores do parque podem pedir desde macarrão de arroz até sanduíches e chá de bolhas. Um drone, carregado com produtos de um shopping center a menos de três quilômetros, surge e paira sobre a estação de entrega antes de descer lentamente, depositando as mercadorias em uma caixa lacrada que só pode ser aberta com o número de telefone do cliente. Assim, o jantar é servido sem a intervenção humana. A Meituan aposta em tempos de entrega cerca de 10% inferiores aos dos serviços tradicionais, embora o percurso aéreo em uma embalagem fina de isopor torne a comida – como o porco char siu e uma waffle – um pouco fria.
A expansão da IA e os avanços na indústria robótica
Os drones são apenas uma pequena parte do amplo setor de robótica e inteligência artificial que a China pretende expandir este ano. Com uma guerra comercial acirrada, desafios demográficos e a necessidade de fortalecer uma economia que se distancia progressivamente de seu maior parceiro comercial, Pequim investe nos setores onde vê potencial e necessidade de avançar à frente dos Estados Unidos. As lideranças chinesas encaram a inteligência artificial como peça-chave para aprimorar a força militar, solucionar os problemas decorrentes de uma mão de obra em retração e fortalecer o orgulho nacional – sobretudo quando empresas chinesas conseguem contornar sanções dos EUA em tecnologias essenciais.
Em março, o Premier Li Qiang prometeu “liberar a criatividade da economia digital”, com foco especial na “IA incorporada”. Guangdong, que abriga o polo tecnológico de Shenzhen, está na linha de frente desse movimento, tendo recentemente anunciado um aporte de 60 milhões de yuans para centros de inovação. Shenzhen, reconhecida como a capital dos drones na China, beneficia-se de uma regulamentação progressista que impulsiona o desenvolvimento da “economia de baixa altitude”. Segundo a Administração de Aviação Civil da China, o setor deve quintuplicar seu valor e alcançar 3,5 trilhões de yuans na próxima década.
Mas não são apenas os drones que estão mudando o ritmo da vida urbana. Os robôs humanóides têm ganhado destaque. O espetáculo do Festival da Primavera deste ano, assistido por quase 17 bilhões de pessoas, contou com uma dança executada por um grupo de robôs humanóides da empresa Unitree. Recentemente, ocorreu a primeira corrida de meia maratona entre um humanoide e um ser humano, nos arredores de Pequim.
O impulso da inovação e a aceleração do aprendizado
“Aplicar inteligência artificial a robôs disparou no ano passado”, afirma Rui Ma, analista de tecnologia e investidor baseado em San Francisco. Esse movimento pode permitir que a indústria cresça a um ritmo muito mais acelerado em 2025 do que nos anos anteriores. O aprendizado por reforço – que treina os robôs a aprender a partir de experiências em vez de depender de modelos rígidos – possibilita que robôs humanóides sejam treinados em meses, e não em anos, acelerando a inovação.
Animais robóticos, como os cachorros de brinquedo, já fazem parte do cotidiano na China. Em um mercado atacadista em Yiwu, uma criança brinca com um cão robótico enquanto sua mãe negocia preços de cílios postiços com exportadores. Nas ruas de Xangai, uma mulher passeia com seu robô, que, de forma prática, carrega uma cesta de compras.
A corrida tecnológica e os desafios da integração
O desenvolvimento da indústria robótica chinesa está profundamente ligado aos avanços na inteligência artificial. Durante anos, a China tem buscado alcançar os Estados Unidos nesse campo, com Xi Jinping defendendo o impulso do crescimento econômico por meio de “novas forças produtivas de qualidade”, conceito que inclui tecnologias avançadas. Muitos em Washington temem que a liderança americana esteja se estreitando, principalmente devido ao domínio sobre a cadeia de suprimentos dos semicondutores – os microchips usados para treinar os modelos avançados de IA. Enquanto os EUA restringem a exportação dos chips mais sofisticados para a China, em janeiro, uma empresa chinesa até então desconhecida, a DeepSeek, lançou um modelo de raciocínio baseado em linguagem, o R1, que se saiu tão bem quanto os concorrentes americanos, a um custo muito menor.
Esse feito provocou uma forte reação no mercado financeiro, com uma queda significativa no principal índice de tecnologia de Wall Street, à medida que investidores passaram a temer que a vantagem tecnológica dos EUA não fosse mais garantida. “Não há como exagerar o quão surpreendente foi esse momento”, afirma Ma.
A partir daí, a indústria de IA na China se encheu de otimismo. Impulsionada pelo governo, que aposta nessa tecnologia como solução para um crescimento econômico sustentável, o público também passou a acreditar no potencial revolucionário da inteligência artificial. Empreendedores do setor, como Li Shuhao, que fundou uma empresa de marketing em IA em Guangzhou, perceberam que o cenário mudou: a presença do modelo R1 facilitou encontros e entrevistas com outros cientistas da área, simbolizando o jeito chinês de fazer negócios – sobreviver primeiro para depois inovar.
Avanços na cadeia produtiva e os desafios à frente
A cadeia de suprimentos na robótica pode ser dividida em três partes: o “cérebro”, o “corpo” e a aplicação prática da tecnologia. A China já demonstrava confiança na produção em larga escala de componentes e na montagem de produtos complexos, porém, desenvolver um “cérebro” robótico capaz de aprender comportamentos e movimentos humanos sempre foi o maior desafio, exigindo um nível sofisticado de inteligência artificial.
O modelo R1 da DeepSeek abriu caminho para que empresas chinesas de robótica humanóide atingissem competitividade com os concorrentes estrangeiros, como observaram analistas do Goldman Sachs. O fato de o modelo ser de código aberto e utilizar chips menos avançados nivela as condições para as empresas locais.
A indústria, no entanto, ainda enfrenta desafios significativos. Qualquer modelo de IA requer grandes volumes de dados para treinamento. Enquanto os modelos de linguagem são alimentados pelo vasto conteúdo da internet, os dados para IA robótica – que envolvem informações sobre movimentação física e interação com objetos ou pessoas – são relativamente escassos. Em veículos autônomos, por exemplo, um carro precisa navegar através de seis graus de liberdade; para um robô humanóide executar tarefas cotidianas, como cozinhar, podem ser necessários até 60 graus de liberdade. O modelo H1 da Unitree, que impressionou no Festival da Primavera, conta com 27 graus de liberdade.
Além dos humanóides, robôs com mobilidade reduzida também podem executar funções importantes, sobretudo em ambientes industriais perigosos ou com tarefas repetitivas. Empresas como a UBTech, com sede em Shenzhen, já fornecem robôs humanóides para fábricas de automóveis. Diante de uma força de trabalho em declínio, a China busca automatizar o máximo possível.
Em um fórum de negócios realizado no mês passado, organizadores demonstraram essa tendência ao oferecer jianbing – um tradicional pastel chinês – preparado por um braço robótico, embora o lanche não tivesse a mesma crocância de um feito por mãos humanas. Em Pequim, parques intensificaram sua vigilância ao instalar câmeras em veículos autônomos que percorrem as calçadas.
Segundo Amber Zhang, gerente de produto na BigOne Lab em Pequim, “os robôs não estão substituindo a grande maioria da força de trabalho. Por exemplo, olhe para os táxis robóticos: quantos motoristas de táxi realmente são substituídos? Ainda existem muitos obstáculos.” Em algumas cidades chinesas, a empresa Baidu opera frotas de táxis autônomos, conhecidos como Apollo Go ou “robotaxis”. Contudo, em uma tentativa recente, o serviço em Shenzhen mostrou limitações: ele opera apenas em um distrito e, ao solicitar um veículo, o tempo de espera ultrapassou 20 minutos, enquanto um táxi convencional chegava em apenas quatro minutos.
O debate sobre tecnologia, crescimento e segurança econômica ganhou força num cenário em que setores tradicionais – como o imobiliário – já não são mais fontes garantidas de receita para muitos governos locais. O interesse em atrair empresas inovadoras e apoiar iniciativas tecnológicas torna-se, assim, uma estratégia para revitalizar a economia.
Essa mudança representa uma virada de época. Há alguns anos, executivos do setor de tecnologia eram deixados à margem enquanto Xi Jinping combatia a concentração de riqueza e influência fora do Partido Comunista. No entanto, recentes encontros entre o líder e grandes empresários do setor, como o fundador da DeepSeek, sinalizam que o cenário voltou a favorecer a inovação e o empreendedorismo.
Enquanto muitos setores enfrentam desafios – desde a pressão tarifária sobre as exportações até a demanda do consumidor em baixa – o investimento em tecnologias disruptivas e a confiança no potencial de crescimento da inteligência artificial ajudam a renovar as expectativas para o futuro econômico da China.