Uma vez a cada década, a Apple mobiliza toda a sua base de usuários com uma irritação coletiva pixelada: ela redesenha seu software e apresenta um novo visual. Essa nova aparência, batizada de Liquid Glass, está, como era de se esperar, gerando controvérsia.
“De que adianta esse design incrível de Liquid Glass se você não consegue ler ou enxergar nada com clareza?” questionou um criador de conteúdo tecnológico, fazendo referência aos fundos translúcidos que dominam essa interface reflexiva. “Será que sou o único que acha que o novo design Liquid Glass da Apple é uma porcaria?” perguntou o CEO de uma startup. “A cada dia nos afastamos cada vez mais da era de Steve”, comentou um designer.
Primeiro, essa histeria é apenas temporária. Embora o visual tenha sido apresentado de forma extremamente polida no palco da conferência da WWDC desta semana, as versões finais ainda não estão definidas. Os novos sistemas operacionais para iPhone, iPad, Mac e Watch entrarão em uma fase beta de testes que deverá durar pelo menos três meses e, após esse período, o design passará por ajustes contínuos. Foi isso que aconteceu há 10 anos, quando a Apple lançou seu último grande redesenho. Afinal, as pessoas, por serem criaturas de hábito, tendem a desprezar mudanças drásticas de visual.
A discussão acalorada sobre o redesenho faz pouco por abafar os clamores de quem está em pânico com as promessas não cumpridas em relação à inteligência artificial (IA) da Apple. Este é um momento particularmente delicado para o gigante da tecnologia. Na WWDC do ano passado, a empresa anunciou o Apple Intelligence, um conjunto de recursos de IA integrados aos seus sistemas operacionais. No entanto, os recursos mais poderosos do Apple Intelligence ainda não foram lançados, e o que já foi disponibilizado tem se mostrado medíocre. Enquanto blogueiros de gadgets reclamam, os investidores na Wall Street demonstram preocupação de que a empresa esteja perdendo terreno na corrida da IA. Mas será que isso realmente importa para os usuários, que agora temem que seus iPhones fiquem com um visual ultrapassado?
“No fim das contas, os usuários reais não se preocupam tanto com o que a imprensa especializada diz sobre o estágio da Apple com a IA. Eles só querem recursos que funcionem”, afirmou Tom Mainelli, chefe de pesquisas sobre dispositivos e comportamento do consumidor na IDC.
Na prática, o Apple Intelligence não tem desempenho satisfatório. Um dos primeiros recursos lançados foram notificações resumidas por IA, que por vezes fazem pouco sentido. Outro recurso, chamado Clean Up, utiliza a IA para remover objetos indesejados das fotos – ferramenta que, inicialmente, recebeu críticas mistas. Esses recursos melhoraram com o tempo e, caso o usuário não queira usá-los, a Apple disponibiliza uma maneira simples de desativar o Apple Intelligence.
Enquanto isso, a Siri reformulada e mais personalizada – que deveria ser o carro-chefe do Apple Intelligence – nunca chegou a ser lançada. Após meses de atrasos e atualizações gradativas, a Apple admitiu em março que os recursos apresentados na WWDC do ano passado – como a capacidade de integrar dados entre aplicativos, executar ações em nome do usuário e até ajudar a lembrar nomes – não estarão prontos tão cedo. Ainda não se sabe o quanto isso importa para o usuário médio do iPhone.
Alguns consumidores insatisfeitos têm manifestado seu descontentamento de forma contundente. A Apple lançou uma campanha publicitária massiva em torno do Apple Intelligence, incluindo comerciais que exaltavam uma versão mais avançada da Siri. Um truque de lembrar nomes, apresentado em um comercial estrelado pela atriz Bella Ramsey, acabou sendo citado em uma ação coletiva que acusava a empresa de propaganda enganosa. Atualmente, a Apple enfrenta três processos desse tipo, nos quais os reclamantes afirmam ter adquirido os novos dispositivos esperando usufruir das ferramentas do Apple Intelligence – disponíveis apenas nos aparelhos mais recentes – e, assim, terem pago um “prêmio ilegal” por algo inexistente. Em resposta, a empresa retirou o comercial e passou a adicionar avisos sobre os novos recursos da Siri em seu site.
Em um sinal de que a Apple está sentindo a pressão, seus executivos agora defendem a decisão de não lançar mais recursos de IA de forma precipitada. “Isso exige muito trabalho, mas nós enxergamos a IA como uma onda transformadora a longo prazo, que afetará nosso setor e, claro, nossa sociedade pelas próximas décadas”, declarou o chefe de software da Apple, Craig Federighi, ao Wall Street Journal. “Não há necessidade de apressar o lançamento de recursos errados e de um produto inadequado só para ser o primeiro.”
A nova demora na chegada da Siri se deve, segundo Federighi, ao fato de a Apple ter que reconstruir sua arquitetura com foco na privacidade. Enquanto isso, o Google não hesita em utilizar sua vasta infraestrutura de computação em nuvem para alimentar a última versão do Gemini, o assistente de IA integrado ao Android.
Para os usuários da Apple que estão cansados de esperar por recursos de IA melhores – e, novamente, não está claro quantos são – o Google surge como a alternativa evidente. A gigante das buscas não esconde suas ambições nessa área. Enquanto a Apple mal mencionou a IA durante sua conferência de desenvolvedores, o Google fez da inteligência artificial o ponto alto de seu próprio evento, em maio. A empresa chegou a demonstrar um protótipo que usava a câmera e os microfones do telefone para captar o que acontecia ao redor e executar tarefas em nome do usuário. Se a Siri parece um tanto limitada, a IA do Google pode, no futuro, se revelar excessivamente poderosa.
Como já fez com o iPod e com o headset Vision Pro, a Apple costuma esperar para ver como os demais se comportam com uma nova tecnologia antes de agir. Se ela não foi a primeira a lançar algo, a intenção é fazer a melhor versão possível.
“Há o risco de a Apple, se for muito lenta ou excessivamente cautelosa, perder parte dos consumidores que desejam estar na vanguarda, mas acredito que a maioria dos clientes só quer que a empresa faça as coisas da maneira certa”, ressaltou Mainelli.
É, de fato, surpreendente que a Apple tenha anunciado algo relacionado à IA, considerando o quão caótico o setor ainda se mostra. Enquanto o Google se apresenta de maneira organizada, outros gigantes da tecnologia estão correndo para descobrir como se inserir em um mundo impulsionado pela IA. A Meta, por exemplo, está investindo bilhões em um novo laboratório de “superinteligência”, reorganizando seus esforços na área – que, até o momento, têm apresentado resultados mistos. A Amazon enfrenta dificuldades para lançar o seu novo assistente Alexa+ com recursos de IA, e até mesmo a OpenAI anda cautelosa em seus próximos passos, depois de adquirir uma startup fundada pelo ex-chefe de design da Apple, Jony Ive, que trabalha secretamente em desenvolver “companheiros” de IA para as pessoas levarem consigo.
Por ora, os dispositivos da Apple podem funcionar como um refúgio seguro contra os excessos e experimentações com IA, em um cenário digital em que a nova tecnologia parece avançar por todos os cantos. É possível utilizar aplicativos de IA, como ChatGPT, Perplexity ou mesmo o Google Gemini, no iPhone ou no Mac, mas a experiência não precisa girar em torno de ferramentas inacabadas. Conforme observou Federighi ao Wall Street Journal, a Apple tornou a internet acessível para milhões de usuários, mas isso não significa que todas as experiências ocorram dentro do ecossistema da empresa.
“A Apple tornou a internet acessível de tantas formas – mais do que qualquer outra –, mas isso não quer dizer que todas as experiências que você tenha aconteçam dentro da Apple”, afirmou Federighi.
Na mesma entrevista, o executivo deixou claro que a empresa continua investindo no desenvolvimento de seus próprios modelos de IA, pretendendo integrá-los profundamente em seus dispositivos. Entretanto, se você prefere aproveitar seu iPhone sem tantas funções de IA, essa realidade pode se manter por mais um ano.
Você, porém, não poderá escapar do Liquid Glass. Ame-o ou odeie-o, o novo visual chegará a todos os dispositivos Apple mais recentes neste outono.