Por que às vezes você não sente dor até que seja tarde demais

Resumo: Novas pesquisas destacam como a própria química cerebral pode suprimir a dor, explicando por que indivíduos gravemente feridos – como soldados da Segunda Guerra Mundial – às vezes sentem pouco desconforto. A chave está em uma região do cérebro denominada cinzenta periaquedutal (PAG), que atenua os sinais de dor antes de chegarem à consciência. Esse sistema libera encefalinas, opioides naturais que imitam os efeitos da morfina. Experiências cotidianas, como foco intenso, estresse ou exercícios, podem ativar esse mecanismo interno de controle da dor, abrindo caminhos para tratamentos sem o uso de opioides.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o médico Henry Beecher observou que alguns soldados feridos no campo de batalha não precisavam de analgésicos potentes para controlar a dor – mesmo em casos de lesões severas, como a perda de parte de um membro. Um fenômeno surpreendente estava em ação: o medo, o estresse e a emoção conseguiam, momentaneamente, desligar a sensação dolorosa. Mas como exatamente isso funciona e como podemos tirar proveito desse mecanismo?

Todos nós lidamos com a dor em algum momento: aquela sensação de queimação de uma indigestão, o recuo causado por uma queimadura acidental ou a agulhada de um corte. Além disso, situações estressantes, a alimentação e até a atividade sexual podem influenciar a atividade das encefalinas e de outros compostos relacionados.

Apesar de ser desagradável, a dor tem um propósito fundamental: proteger o corpo contra danos. É importante entender que a dor não é detectada de forma direta – ela é uma sensação criada pelo cérebro a partir das informações recebidas por inúmeros neurônios presentes na pele. Esses neurônios especializados, conhecidos como nociceptores, identificam estímulos potencialmente danosos, que podem variar desde um corte mecânico ou uma lesão por esmagamento até temperaturas extremas.

Assim, se você tocar em um ferro quente ou pisar em um objeto pontiagudo, sua reação imediata – retirar a mão ou o pé – é um mecanismo de proteção do corpo. O cérebro inicia contrações musculares para evitar maiores danos, transmitindo essas informações por meio de impulsos elétricos chamados potenciais de ação, que se propagam da pele pelos nervos e chegam à medula espinhal. Quando esses sinais alcançam o córtex cerebral, a sensação de dor é gerada.

Bloqueando os Sinais da Dor

Diferentes fatores podem interferir na transmissão dessas informações. Por exemplo, quando o trajeto dos sinais até o córtex é bloqueado, não sentimos dor. Os anestésicos ilustram bem esse fenômeno: os anestésicos locais, injetados diretamente na pele (como a lidocaína), desativam os nociceptores – procedimento comum em emergências para a realização de pontos de sutura. Já os anestésicos gerais induzem perda de consciência para procedimentos cirúrgicos mais extensos.

A experiência da dor é altamente variável. Frequentemente, pacientes são solicitados a quantificar sua dor em uma escala de zero a dez. O que para uma pessoa corresponde a uma dor moderada, para outra pode ser significativamente mais intensa ou mais leve. Há ainda casos raros, como a analgesia congênita, em que indivíduos nascem sem a capacidade de sentir dor – uma condição que, embora possa parecer vantajosa, pode levar a lesões graves por não perceberem danos iminentes ao corpo.

Como Enganar o Seu Cérebro

De forma extraordinária, todos nós possuímos uma habilidade inata para controlar os níveis de dor. Nas profundezas do sistema nervoso, existe um analgésico natural. Esse segredo está em uma estrutura localizada bem no centro do cérebro: a cinzenta periaquedutal (PAG). Essa pequena região, com formato que lembra um coração, contém neurônios responsáveis por modificar os sinais de dor que chegam ao córtex, suprimindo temporariamente a sensação dolorosa.

Podemos observar esse mecanismo em situações extremas, como no campo de batalha. Em tais cenários, sentir dor pode prejudicar a capacidade do soldado de agir rapidamente, dificultando a fuga ou a assistência aos companheiros. Ao inibir temporariamente a percepção da dor, o soldado consegue escapar do perigo e buscar refúgio.

No cotidiano, essa habilidade também se faz presente. Imagine pegar um objeto na cozinha e perceber que ele está extremamente quente. Muitas vezes, conseguimos segurá-lo por tempo suficiente para transferi-lo com segurança, mesmo que a sensação de calor extremo esteja presente – um reflexo do PAG bloqueando momentaneamente o sinal de dor.

As encefalinas, substâncias produzidas em diversas áreas do cérebro – inclusive na PAG e na medula espinhal – atuam de forma semelhante a potentes analgésicos, como a morfina. Alguns pesquisadores sugerem que a dor crônica, aquela persistente e sem função protetora, pode ser resultado de anomalias nesse sistema natural de analgesia. Essa descoberta levanta a questão: como podemos ajustar nosso sistema nervoso para aumentar a liberação de encefalinas e obter um efeito analgésico?

Estudos indicam que a liberação de encefalinas pode ser potencializada por meio de diversas práticas. O exercício físico é um exemplo marcante, podendo explicar os benefícios de atividades prescritas para dores, como as lombares, sem a necessidade de medicamentos. Além disso, o estresse, a alimentação e a atividade sexual também podem influenciar positivamente a liberação desse composto e de outros relacionados.

Embora sejam necessários mais estudos para clarificar o papel desses fatores no manejo da dor, os resultados preliminares sugerem que investir em treinamento de força ou resistência, reduzir o estresse, manter uma dieta equilibrada e cultivar uma vida sexual saudável podem trazer benefícios significativos para o controle da dor.

Apesar dos desafios que a compreensão e o tratamento da dor ainda representam, o futuro é promissor. Recentemente, a FDA aprovou um novo medicamento, o Journavx, para o manejo da dor aguda, que atua bloqueando os nociceptores no sistema nervoso periférico e, assim, impede que os sinais de dor cheguem ao cérebro. Essa inovação representa um avanço significativo, especialmente em um contexto de crescente dependência de medicamentos opioides, como a morfina e o fentanil.

O desenvolvimento de novos tratamentos analgésicos depende do trabalho contínuo dos pesquisadores que buscam desvendar os complexos circuitos neuronais e funções do nosso sistema nervoso. Ao compreendermos melhor os mecanismos de geração e supressão da dor, podemos vislumbrar um futuro em que o corpo tenha mais condições de promover sua própria cura.